O Futuro da Ponta da Piedade
Seminário reúne especialistas e suscita elevada participação da comunidade lacobrigense.
Foi numa tarde de primavera envergonhada que muitos lacobrigenses aceitaram o convite lançado pela Assembleia e pela Câmara Municipal de Lagos, comparecendo, no passado sábado, dia 28 de abril, no Seminário para debater o Futuro da Ponta da Piedade, uma parcela do território concelhio de elevada sensibilidade e valor natural, paisagístico e cultural, que tem estado a ser objeto de uma intervenção de valorização.
A decisão de realização do Seminário, tendo como objetivo promover uma análise crítica da obra em curso e debater a segunda fase da intervenção, foi tomada em Assembleia Municipal na última sessão ordinária de 2017, que aprovou a proposta da autoria da CDU apresentada nesse sentido, ficando a responsabilidade da sua organização partilhada entre a Comissão Permanente da Assembleia e a Câmara Municipal e desde logo indicados algumas entidades e oradores a convidar.
Paulo Morgado, Presidente da Assembleia Municipal, moderou os trabalhos e iniciou os mesmos enaltecendo as características e a notoriedade, nacional e internacional, do monumento natural que é a Ponta da Piedade, salientando ser do interesse da região e do próprio país que este monumento tenha as condições para ser conhecido e, simultaneamente, preservado para usufruto das gerações vindouras.
A Presidente da Câmara Municipal, Maria Joaquina Matos, congratulou-se igualmente pela oportunidade de debater o tema, mas sublinhou a necessidade de se “tomar consciência de que o futuro deste território já tem passado”, recordando, através da sua comunicação, os antecedentes da intervenção em curso, os quais remontam a abril de 1999 com a aprovação do POCC – Burgau/Vilamoura, documento que previa para a Unidade Operativa n.º 1 (correspondente à Ponta da Piedade) um projeto específico tendo em vista a sua valorização e tratamento paisagístico. Reconstruindo esse histórico, lembrou igualmente que em 2009/10 foi promovido pela APA, em parceria com o Município e com a entidade proprietária dos terrenos onde viria a ser edificado o Cascade Resort, um estudo prévio para a valorização da costa entre a D. Ana e o Canavial, cuja concretização ficou suspensa fruto de dificuldades e vicissitudes diversas por parte das entidades públicas e privadas. O processo acaba por ter desenvolvimento em 2016 com a perspetiva de possível obtenção de financiamento no âmbito do CRESC Algarve 2020, o que despoletou novos contactos com as entidades competentes que permitiram a celebração de um protocolo para viabilizar a concretização do referido projeto de valorização da Ponta da Piedade. Joaquina Matos referiu ainda ter havido necessidade de proceder a um faseamento da intervenção, correspondendo a primeira fase ao troço entre o Canavial e a Ponta da Piedade (a qual foi subdividida em 2 empreitadas: uma, já concluída, no valor de 170.500,00€ e a segunda, em curso, no montante de 149.900,00€ referente a correções de traçado e de perfil, nomeadamente a substituição de troços de caminho ao nível do solo por soluções sobrelevadas em relação ao terreno natural, em passadiço de deck) e a segunda fase ao troço Ponta da Piedade/Praia do Pinhão com elaboração de projeto já adjudicada. A Presidente concluiu a sua intervenção referindo o grande desafio que constitui a preservação daquele território, em que a Câmara eleita se encontra empenhadíssima, e afirmando que tudo aquilo que foi feito até ao momento cumpre esse desafio de preservação.
Seguiram-se as comunicações dos restantes oradores convidados - Dina Salvador, Bióloga; Hipólito Bettencourt, Arquiteto; João Pedro Bernardes, Arqueólogo; e Mário Cachão, Geólogo - cada um dos quais partilhando a sua perspetiva técnica e sensibilidade sobre o assunto.
Dina Salvador, bióloga de formação e uma das cidadãs que mais participação ativa tem tido no debate público sobre a Ponta da Piedade, começou por apresentar a importância do legado deixado naquele território pela natureza, complementando a mesma com uma análise crítica ao que se tem feito a esse património, identificando os aspetos a corrigir e salientando a necessidade de se proceder a um estudo sobre a capacidade de carga (visita/utilização) da Ponta da Piedade e prevenindo sobre as consequências de não se agir em conformidade. A sua proposta passa por: classificar a zona como de interesse público; definir a capacidade de carga do território; criar uma instituição que se ocupe da gestão do mesmo, não descartando a possibilidade de se equacionar a cobrança do acesso à Ponta da Piedade; e envolver num diálogo e debate aberto todos os agentes com interesses naquele território, designadamente os proprietários.
Representando a equipa projetista da intervenção de valorização da Ponta da Piedade, o Arq.º Hipólito Bettencourt explicou os cuidados tidos na elaboração do projeto, decorrentes das características e sensibilidade do próprio território, e do facto do mesmo ser um espaço com vocação para fruição pública que se deve sobrepor aos interesses privados. “A variedade estética fortíssima conjugada com a sensação de risco são”, no seu entendimento, “a fórmula do sucesso da Ponta da Piedade”, o que ao longo dos anos deu origem ao aparecimento de um excesso de percursos que foi necessário estudar para se perceber quais os mais utilizados e que faria sentido manter ou não, considerando também as condicionantes de intervenção decorrentes da própria geomorfologia do terreno e dos fenómenos naturais. O arquiteto adiantou ainda que, no âmbito da elaboração do projeto da 2.ª fase, serão analisadas e repensadas todas as questões inerentes aos eixos de circulação viária de ligação à cidade, criando percursos mais seguros para os peões, à acessibilidade, circulação e estacionamento na zona, aos equipamentos de apoio e às condições de visitação.
A terceira comunicação de caráter técnico esteve a cargo de João Pedro Bernardes, Arqueólogo e docente da Universidade do Algarve. Na sua intervenção destacou a importância da carga cultural e simbólica da Ponta da Piedade, identificando que ao longo dos tempos a mesma foi espaço sagrado ligado aos marítimos, local de crença e culto religioso com a Ermida da Sr.ª da Piedade (cuja construção remonta ao séc. XVI, admitindo a existência de construções anteriores, e foi destruída para dar lugar à construção do Farol entre 1912 e 1913), local de vigia e defesa (com a construção em 1663 de uma bateria militar composta de paiol e quartéis, que seria reconstruída na 2.ª metade do séc. XVIII e, por fim, abandonada em 1821), assim como de sinalética para os marítimos.
Mário Cachão, geólogo, docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e coordenador da Pro-GEO-Portugal (Associação de Defesa do Património Geológico), partilhou de forma muito didática e acessível o seu aprofundado conhecimento na matéria, ajudando todos os presentes a perceber como e quando é que a Ponta da Piedade se formou e a que se deve o seu aspeto irregular que lhe confere a tão apreciada beleza, e, por via dessa informação, a tomarem consciência do elevado valor natural em presença.
A última intervenção caberia a Nuno Marques, que, na qualidade de Vice-Presidente da CCDR-Algarve, utilizou o seu tempo para clarificar quem é quem neste processo (APA – autoridade responsável do Domínio Público Marítimo e pelo POOC; CMLagos – Dona da obra; CCDR – autoridade responsável pela REN) e qual o enquadramento legal desta intervenção, recordando os principais momentos (aprovação do POOC Burgau-Vilamoura em 1999 – art.º 71; desenvolvimento do programa geral em 2010; elaboração de projeto específico em 2014 e projeto de revisão em 2017). Quanto à solução implementada, Nuno Marques deu exemplos de outros locais onde se adotou igual tipo de solução (betão poroso) à aplicada nos percursos da Ponta da Piedade (a Ecovia do Litoral Norte; o Caminho dos Três Pauzinhos na Mata Nacional de Monte Gordo em Vila Real de Santo António) para demonstrar que a mesma não é assim tão invulgar nem desadequada como se falou em praça pública. O Vice-Presidente da CCDR-Algarve recordou, ainda, todos os instrumentos de ordenamento e planeamento do território que, começando no Ante-Plano de Urbanização de Lagos (1957) e acabando no Plano de Urbanização de Lagos (2012) e no PDM de Lagos (2015), reconheceram a necessidade de preservação da Ponta da Piedade e a não edificação neste território, afirmando que “se há dúvidas sobre a consciência do valor da Ponta da Piedade, a avaliar pelo ordenamento do território desde há 60 anos, diria que é enorme”, e que, segundo a CCDRAlgarve, “não se deve fazer marcha atrás no trabalho já realizado”, até porque “nada do que ali foi feito é irreversível”. Nuno Marques finalizou a sua intervenção dirigindo um cumprimento à cidadania lacobrigense pelo interesse e participação demonstrada relativamente ao tema em debate.
Seguiu-se um debate vivo, com questões colocadas pelo público presente, tendo como denominador comum as preocupações relativas: à preservação da Ponta da Piedade; à segurança dos visitantes; à necessidade de dotar o espaço de mais sinalética (quer com alertas de segurança, quer com conteúdos que proporcionem informação acrescida aos visitantes sobre os valores naturais e patrimoniais em presença); e ao envolvimento da população para que haja uma opinião pública mais esclarecida.